NOSFERATU
1922
Nosferatu é um filme clássico do expressionismo alemão. Produzido em 1922, suas imagens de horror ainda conseguem nos surpreender. Foi baseado em Drácula, de Bram Stoker (1897). O diretor F. W. Murnau não conseguindo os direitos autorais com a viúva de Stoker, acabou produzindo uma versão independente, cuja narrativa preserva o enredo original de Stoker (uma das versões de Nosferatu apresenta o nome de cada personagem com seu equivalente no romance de Stoker).
Ao invés de Conde Drácula, Nosferatu é Conde Orlok, uma das mais fiéis representações filmicas do vampiro. Alto, esguio, esquálido, com orelhas, nariz e dentes pontiagudos, Murnau consegue representar com sucesso a figura do personagem macabro de Stoker. Na verdade, o horror se transfigura em Nosferatu. É a própria representação (e expressão imagética) do Mal e do estranhamento sugerido pela figura mítica do vampiro. O conteúdo do Mal se exprime com vigor na forma de apresentação do personagem. De fato, nunca o cinema de horror conseguiu expressar com tanta fidelidade a dimensão macabra da lenda do vampiro como em Nosferatu, de F.W. Murnau.
O Conde Orlock, é, em si, uma figura estranha e aterrorizante. Como salientamos acima, sua imagem expressa o próprio conteúdo do seu ser maligno. Não existe em Nosferatu a dissimulação/ocultação da natureza maligna do vampiro. O horror se expressa em-si e para-si. O mal está entre nós e assim se apresenta em corpo, espírito e verdade. De certo modo, o vampiro de Murnau conseguiu ser a síntese estética do Horror que iria se abater sobre a civilização do Capital na década seguinte - nos anos de 1930 ocorreria a a ascensão do nazi-fascismo na Alemanha, pre-anunciando o horror da II Guerra Mundial. É o que Arendt considerou a “banalização do Mal”. Nosferatu poderia ser considerado a própria expressão da “banalização do Mal”. Como Mr. Hyde, o personagem de Robert Louis Stevenson em O Médico e o Monstro (de 1886), Nosferatu consegue ser a expressão em imagem da essência do Mal. Como diz a abertura do filme, “Nosferatu é a palavra que se parece com o som do pássaro da morte da meia-noite”.
Nosferatu vive nas sombras e na escuridão. É um ser noturno, de um mundo das trevas, perdido no passado de uma terra distante (a Transilvânia). A própria narrativa de Nosferatu destaca que o vampiro é uma criatura da noite. “Os fantasmas da noite parecem reviver das sombras do castelo” – diz o narrador de Nosferatu. É na escuridão que está o horror do vampiro. É interessante que a lenda do vampiro se difunde nos primórdios da sociedade tecnológica, da II Revolução Industrial, onde a invenção da eletricidade – ou da lâmpada elétrica, em 1879 - deu o “golpe de misericórdia” nos poderes da noite e da escuridão (embora, é claro, segundo a lenda, apenas a luz do sol pudesse matar o vampiro).
O filósofo alemão Walter Benjamim registrava com maestria em seus textos o êxtase das pessoas diante das invenções da Modernidade. Por exemplo: os moradores da Paris do século XIX deslumbravam-se com a iluminação noturna de lampiões a gás, que ofuscava a luz das estrelas. Com a invenção da lâmpada incandescente, em 1878, por Thomas Edison, a luz dos lampiões a gás passou aos poucos a ser substituída por pequenas redes elétricas de iluminação, limitadas, é claro, aos centros urbanos. Com o avanço da lâmpada incandescente, a noite, com sua escuridão, perdia, mais ainda, seus encantos naturais. Além disso, a invenção da lâmpada incandescente inaugura uma nova era: a da utilização da eletricidade como energia economicamente viável. Antes da invenção da lâmpada incandescente, as necessidades de utilização da energia elétrica eram pequenas, embora houvesse certa aplicação nas comunicações e na metalurgia. A lâmpada incandescente de Edison era apenas a ponta de um complexo sistema, integrando tecnologia e aspectos financeiros, comerciais e políticos. Ele criou uma rede elétrica para os centros urbanos, na mesma escala que as de gás. A Edison General Electric foi fundada para explorar as patentes das tecnologias inventadas e produzir todos os elementos do sistema de energia elétrica, de dínamos a lâmpadas. Associado aos irmãos Siemens, instalou a primeira rede de iluminação pública da Europa. Ela inaugura uma nova era do desenvolvimento capitalista – a do imperialismo com suas grandes empresas monopolistas que, com suas maravilhosas invenções modernas, “desencantavam” o cotidiano de homens e mulheres dos centros urbano-industriais.
Na medida em que o homem pode agora prolongar o dia e até abolir a noite, o vampiro, que é a criatura da noite, aparece como a representação alegórica de um passado que nos persegue, pois se inventamos a eletricidade, e com ela, a lâmpada incandescente, não conseguimos abolir em definitivo os ciclos da natureza. Na verdade, embora o capital em seu processo avalassador, tenda a promover o recuo das barreiras naturais, não consegue abolir a Natureza em sua dimensão estranhada. Eis o seu limite crucial. O vampiro, talvez seja, em sua dimensão sócio-estética, a representação alegórico-fantástica das contradições sócio-metabólicas do processo civilizatório do capital. O vampiro seria apenas a alegoria fantástica de uma Natureza estranhada.
Em Nosferatu, é, portanto, muito claro o par antitético luz-escuridão, onde o primeiro significa civilização e progresso, e o segundo, tradição e barbárie (no romance de Stoker está presente uma série de referências às novas invenções da era tecnológica, em contraste com o horror de uma era das trevas personificado na figura de Drácula – o que se perde no filme de Murnau). Luz-escuridão é um par antitético que irá caracterizar a civilização do capital, principalmente – e literalmente – a partir da II Revolução Industrial.
Mas é importante salientar que Drácula, ou Nosferatu, não pertence a um passado distante, mas sim ao presente estranhado do mundo burguês. A aparição do vampiro na narrativa fantástica do século XIX, em sua forma acabada, tal como apropriada pela ficção especulativa da era do imperialismo (com Bram Stoker), parece sugerir que Drácula, ou Nosferatu, é uma criatura da periferia estranhada da civilização do capital (o que explica o requinte aristocrático do personagem, presente tanto na obra de Stoker, quanto no filme de Murnau).
Além disso, a passagem para a Modernidade urbano-industrial, tanto em sua via clássica, com a Revolução Inglesa, quanto em sua via prussiana, cujo caso alemão é exemplar, ocorreu através da conciliação do novo com o arcaico, da classe burguesa emergente com a classe aristocracia. A nobreza feudal, classe de origem do Conde Drácula, manteve, de certo modo, seus privilégios nobiliárquicos nas sociedades burguesas (principalmente nos países capitalistas de via prussiana). Deste modo, é como se o vampiro expressasse, ou fosse o resultado maligno, do caráter conciliador do próprio desenvolvimento capitalista, com as forças do passado (e com os mortos). Marx (e Comte) já salientaram o caráter contraditório da Modernização – com a preservação do Não-Morto – quando disse que cada vez mais os mortos pesam sobre os vivos.
Entretanto, como já destacamos, Drácula, de Bram Stoker, é um romance burguês que não deixa de festejar o Iluminismo, representado pela ciência moderna. Mas, por outro lado, consegue apreender, de forma alegórica, que, apesar do avanço da “civilização da luz”, a Belle Epoque, a escuridão em suas múltiplas formas literais ou alegóricas, e com ela o medo de fantasmas do passado e da tradição, ainda se mantém como espaço da barbárie histórica. É talvez expressão de um sócio-metabolismo do capital imerso em contradições suas e do próprio processo civilizatório (além, é claro, de ser, expressão da própria via contraditória de desenvolvimento capitalista com suas conciliações “pelo alto”).
Entre a publicação de Drácula, de Bram Stoker, em 1897, e o inicio da I Guerra Mundial, em 1914, que dilacerou - e sugou o sangue - de milhões e milhões de homens da civilização européia, transcorreram apenas 18 anos...o tempo de maioridade da Razão imperialista, a fase superior do capitalismo (e cabe observar: a I Guerra Mundial, deflagrada em 1914, originou-se – e se disseminou pelo Ocidente europeu - a partir de sua periferia menos desenvolvida - assassinato do Principe herdeiro do Imperio Austro-Hungaro pelo anarquista sérvio Gabriel Princip).
Por outro lado, o filme de Murnau altera a temporalidade, e a territorialidade, inscrita no romance clássico original de Stoker. A narrativa de Nosferatu passa-se em 1938, em Wisborg, cidade da atrasada Alemanha feudal. Murnau perde, deste modo, um referencial importante do romance de Stoker, cuja trama ocorre em Londres em fins do século XIX, imerso na II Revolução Industrial, a revolução da eletricidade; o pólo mais desenvolvido do mundo do capital. Em Stoker é como se Drácula prefigurasse a reação da Tradição e da era das trevas contra a civilização da luz, a civilização do capital, com suas inovações tecnológicas baseadas no espírito do Iluminismo. Mas em Nosferatu, Orlock é um espírito velhaco, pura representação do Mal, que almeja estabelecer-se em Wisborg, uma pequena cidade de uma Alemanha atrasada semi-feudal. Dilui-se o contraste com o Progresso das Luzes, pois na Wisborg semi-feudal não existe ainda a civilização do capitalismo industrial emergente (apesar de que, como já salientamos, na Alemanha semi-feudal, o desenvolvimento capitalista-moderno irá se dar através da conciliação com a nobreza prussiana). Em Nosferatu, Orlock se confunde com a Peste, sendo apenas sua representação fantástica.
Deste modo, pelo menos em sua dimensão imediata, a construção narrativa do vampiro de Murnau perde a capacidade de representar a dimensão crítica do vampiro de Stoker: ser o prenúncio de horror da civilização do capital, impulsionada pela II Revolução Industrial e cuja etapa superior é o imperialismo. Na verdade, o Drácula de Stoker é própria prefiguração alegórica do imperialismo como fase superior do capitalismo, sedento de sangue e obrigado a se expandir para se reproduzir enquanto sistema sócio-metabólico (ora, o próprio Capital pode ser considerado, a partir da alegoria de Stoker, tal como Drácula, um Não-Morto).
Mas, na mesma medida, o Nosferatu de Murnau, pode ser considerado a prefiguração alegórica da via prussiana, ou do modo de desenvolvimento capitalista que se caracteriza pela conciliação do arcaico com o moderno (o moderno perderia vigor crítico na narrativa filmica de Murnau em virtude das próprias condições sócio-históricas da Alemanha semi-feudal). Ou dizendo melhor, o vampiro de Murnau é o retorno do atrasado – o Não-Morto, que tanto caracterizaria a modernidade capitalista, em sua expressão fantástica.
O vampiro de Murnau é uma figura solitária que apenas almeja ocupar uma velha mansão diante da casa de um jovem casal de Wisborg para prosseguir na sua ânsia de sangue e vida. Orlock, fascina-se por Ellen, jovem esposa de Hutter. Ele, um agente imobiliário, que trabalha para Knock, agente imobiliário oficial da cidade (e que é servidor fiel do Conde Orlock). Mais tarde, Knock iria aparecer internado no asilo local, talvez enlouquecido com a perspectiva da chegado do amo e senhor Conde Orlock.
Conde Orlock é um rico proprietário na Transilvania que busca expandir suas propriedades para Wisborg. Para isso, contacta (e o incorpora como agente espiritual), Knock. É curioso que Orlock utilize símbolos e anagramas em suas cartas com Knock. Possui talvez uma linguagem própria. É Hutter que viaja até a Transilvania para vender a Orlock a propriedade em Wisborg. É convencido por Knock, que afirma: “Você pode ganhar muito dinheiro”. Provavelmente recém-casado, Hutter busca acumular fortuna através da atividade de corretagem imobiliária. Seu personagem é a representação do homem moderno, ansioso em acumular dinheiro e incrédulo (e caçoador) diante da Tradição – como iremos ver suas atitudes diante dos aldeões locais, hospitaleiros mas aterrorizados pelas criaturas da noite. É por isso que irá encontrar-se com Orlock na Transilvania, o “país dos ladrões e dos fantasmas”.
Desde o principio, Ellen tem maus pressentimentos sobre a tarefa de Hutter. No decorrer de todo o filme ela está imersa em maus pressentimentos, sonambulismo e transes sob a influência de Orlock. A figura feminina é mais propicia e sensível às influências do vampiro Orlock. Ellen representa a guardiã da vida, a mãe-Terra, por isso é tão assediada pelo vampiro. Por exemplo, logo no começo do filme, ao ser agraciada por Hutter com um buquê de flores, observa: “Por que você matou essas flores lindas?”. Na verdade, para Ellen, a vida é sagrada e deve ser preservada acima de tudo.
O filme Nosferatu, além do par antitético luz-escuridão, possui outra par antitético: vida-morte. É na estalagem próximo do castelo de Orlock que Hutter encontra o livro que irá carregar até Wisborg. Apesar de ser incrédulo e caçoar das superstições dos aldeões, Hutter irá se apegar a esse livro (o que demonstra que o destemor de Hutter apenas oculta um sentimento ambíguo diante do desconhecido) . O livro chama-se “Os Vampiros - Terríveis Fantasmas – Magia e os 7 Sinais da Morte”. Os aldeões temem a noite, pois ela representa o desconhecido, e diante do terror de Orlock, a morte. Ao pedir aos cocheiros que o levem até o Conde Orlock, logo após o pôr do sol, Hutter recebe logo a resposta deles:“Pode nos pagar qualquer coisa. Não prosseguiremos de jeito nenhum”. Uma atitude que se contrasta com a disposição de Hutter de ir até a Transilvania na perspectiva de ganhar muito dinheiro.
Orlock é bastante cortes com Hutter, apesar de sua figura estranha. O vampiro possui gestos aristocráticos. Vive solitário em seu velho Castelo na Transilvânia. Nosferatu não tem criados. Apenas exerce uma influência sinistra sobre as forças naturais, de animais a homens e mulheres, transformados em seus servos fiéis (é o caso de Knock e de Ellen, que não é propriamnete sua serva fiel, mas apenas está pressentindo seus desejos de possui-la). É Orlock que carrega seus caixões cheios de terra natal e ratos. Os caixões servem para preservar seus poderes.
Apesar de seus poderes malignos (e sobrenaturais), Orlock é uma criatura limitada pela própria Natureza que ele parece comandar a seu dispor. O vampiro é escravo da Natureza, apesar de ir além dela. Não consegue viver à luz do dia e só consegue dormir e repousar em caixões com sua terra natal. Por isso, se quiser expandir sua área de influência precisa de um território onde possa instalar seus caixões de terra.
Para chegar até Wisborg, Orlock precisa carregar seus caixões através do mar. Utiliza um navio mercante. Ele alucina e extermina, aos poucos, toda a tripulação. Sem utilizar uma arma, Orlock domina os marinheiros pelo terror. As autoridades de Wisburg acreditam que foi a peste que dizimou a tripulação do navio-fantasma. Após a chegada do navio (e de Orlock, que se estabelece numa velha mansão em frente da casa de Hutter e Ellen), a cidade é declarada possuída pela peste. O medo domina a todos: “A peste está escondida em todos os cantos da cidade”. Mas, a verdadeira peste, que todos desconhecem, é a chegada de Orlock. Com Orlock vieram, é claro, os ratos, transmissores da peste. Mas o poder oculto que os conduz é Nosferatu. Inclusive, a multidão de Wiborg culpa Knock pela chegada da peste na cidade: “A peste foi trazida por uma vítima – Knock”. O alucinado servidor de Nosferatu consegue fugir, mas é perseguido pela multidão.
Em Nosferatu de Murnau, o personagem que representa o poder da Ciência é o Prof. Bullwer, que aparece explicando para seus alunos os mistérios da natureza. Fala dos pólipos com tentáculos “quase sem corpo” e das plantas carnívoras. É como se Nosferatu fosse mais um mistério da natureza, com sua sede por sangue e vida. Pressentindo que seria atacada pelo vampiro, Ellen implora a Hutter que chame o Prof. Bullwer, cientista capaz de encontrar uma solução para os mistérios e encantos de Nosferatu. Mas, naquela noite, em sua primeira investida contra Ellen, Nosferatu chega tarde: ouve o galo da manhã e é atingido pelos primeiros raios do sol. Em sua cela, Knock lamenta: “O mestre está morto”. Após o desaparecimento de Nosferatu, a mortandade em Wiborg acabou. O que demonstra que a verdadeira peste que atingiu a cidade alemã tinha um nome – Nosferatu.
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Tanque News
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